O termo gramática tem longa tradição na cultura ocidental. Sua origem é o grego grammatike ou, mais tekhne grammatike, “a arte das letras” justamente empregado já por Aristóteles e consolidado pelos filólogos alexandrinos do século III aC, que produziram justamente as primeiras gramáticas da língua grega. Com o tempo, a palavra foi adquirindo diferentes conotações, à medida que penetrava no senso comum e, paralelamente, se tornava um termo técnico dos estudos da linguagem. (BAGNO, 2017, p.168)
A relação existente entre língua, indivíduo e sociedade pode ser observada através da análise do desenvolvimento da consciência metalinguística de uma comunidade. Resultante de uma percepção mais racionalizada sobre a língua, a metalinguagem desponta, entre outros, por meio da gramática e pode ser avaliada, por exemplo, a partir dos muitos sentidos que uma comunidade atribui ao termo. Antunes (2007) debruça-se sobre a polissemia da palavra gramática e observa cinco principais valores atribuídos a ela:
- Gramática 1: conjunto de regras que definem o funcionamento de uma língua.
- Gramática 2: conjunto de normas que regulam o uso da norma culta.
- Gramática 3: uma perspectiva de estudo dos fatos da linguagem.
- Gramática 4: uma disciplina de estudo.
- Gramática 5: um compêndio descritivo-normativo sobre a língua.
A primeira acepção faz referência à ideia de gramática como sistema linguístico, isto é, o conhecimento do uso da língua adquirido por capacidades biossociais. Como tal, atrela-se à percepção de um todo da língua que permite a interação entre os indivíduos de uma comunidade. Por sua vez, na concepção 2, o termo faz referência apenas aos usos considerados aceitáveis na ótica da língua socialmente prestigiada, isto é, a norma culta ou a variedade de prestígio, avaliada como um padrão de correção e referência.
A definição 3 refere-se às abordagens científicas desenvolvi- das pela Linguística nos seus muitos quadros teóricos, os quais procedem ao estudo da linguagem sob diferentes perspectivas, algumas “mais centradas na língua como sistema em potencial, como conjunto de signos” e outras “voltadas para os usos reais que os interlocutores fazem da língua, nas diferentes situações sociais de interação verbal” (ANTUNES, 2007, p. 31). Nessa concepção, inserem-se o gerativismo (gramática gerativa), o estruturalismo, o funcionalismo (gramática funcional) etc. A quarta acepção refere-se à disciplina escolar conhecida como “língua portuguesa”, em que a velha norma-padrão é apresentada e, quando muito, confrontada ao longo da formação do aluno na educação básica.
A quinta conceituação é a que mais interessa a este estudo, pois se relaciona à gramática como suporte da descrição da língua. Portanto, como um gênero do discurso, a gramática assume caraterísticas composicionais, objetivos específicos e trará sempre limitações, posto que não é possível expor em um documento escrito e manuseável toda a dinâmica e complexidade das línguas – em constante feitura. Além disso, é importante observar que todas as outras acepções introduzidas previamente têm impacto nessa última, pois a gramática como instrumento escrito de referência propõe-se a descrever o conhecimento de uso de uma língua (gramática 1), dando especial atenção à sua variedade culta de prestígio (gramática 2), com orientação de algum referencial teórico desenvolvido pelos estudos linguísticos (gramática 3) e circula com maior especificidade no espaço escolar (gramática 4).
A proposição de manuais de gramáticas resulta de um movimento glotopolítico mais amplo na sociedade, o qual se denomina ‘estandardização’ e se caracteriza, segundo Haugen (1959), por um processo de planificação linguística que inclui a preparação de orto- grafia, gramáticas e dicionários para orientação dos escritores e falantes em uma comunidade. Monteagudo (1994, p. 145) chama de ‘codificação’ o “rexistro e regularización da norma nos manuais, gramáticas,diccionarios, etc., por unha autoridade recoñecida, e que axuda a unificar e estabilizar a norma, que adoito está sometida a oscilacións”.
O estudo do curso evolutivo do conhecimento linguístico é objetivo da Historiografia da Linguística (SWIGGERS, 2003) e, dentro dessa disciplina, encontra-se na gramática um relevante repositório que permite conhecer como se maturam as ideias linguísticas de uma sociedade.
A gramática como instrumento que repercute no comportamento linguístico dos indivíduos de uma comunidade decorre, conforme explica Neves (2005), de um contexto histórico de transformação social, resultando, portanto, de um esforço social maior de tentar recuperar a herança política, filosófica e artística que havia experimentado a Grécia em seu apogeu. Nesse movimento de apreço pelo passado, surge uma educação fundamentada na transmissão de um patrimônio literário criado pela filosofia helênica, de modo que a Gramática operou nesse contexto com um interesse filológico, cujo objetivo era conhecer a técnica helênica, prestigiada na sociedade helenística.
Desse modo, a gramática visava a facilitar o acesso aos primeiros poetas gregos, explicitando, por meio da pesquisa filológica, a língua desses autores e “protegendo-a da corrupção”, já que a língua falada cotidianamente nos centros do helenismo era considerada corrompida (NEVES, 2005). Assim, observa-se já na base da fomentação da gramática um conflito cultural e normativo que opunha a memória de uma língua (helênica) ao uso linguístico observado no cotidiano (helenístico) – este mais estigmatizado e menorizado, aquela tida como bela, perfeita e sem corrupção. Essa valoração à língua ideal e escrita permaneceu historicamente atrelada à Gramática, ao menos na sua versão Tradicional.
Leite (2007) observa, especialmente entre os séculos II a. C. e I d. C., uma mudança significativa quando ao objetivo que passa a adotar a gramática. A partir de então, a gramática assume um objetivo mais amplo e aplicado às demandas da sociedade em seu entorno, fomentando a codificação da língua em circulação – embora ainda orientada por princípios cultivados na abordagem inicial, quando a língua escrita dos autores clássicos fora considerada incorruptível e bela, ao passo que o uso cotidiano e falado fora tratado como cheio de desvios e incorreções. Desse modo, a gramática coloca-se em um paradoxo ao “impor regras para o uso da língua sem, no entanto, descrever, efetivamente, a língua em uso”. (LEITE, 2007, p. 48).
Dava-se início à construção do que hoje conhecemos como Gramática Tradicional, uma abordagem que se concentra nas normas do bem falar e escrever, estipulando uma espécie de lei que regula o uso da língua. Assim, irá considerar como “erro” qualquer uso concreto que fuja aos regulamentos de suas folhas. (ARAUJO, 2024, pp. 174-181)
ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola editorial, 2007.
ARAUJO, Leandro Silveira. Contribuições da Sociolinguística para a Gramaticografia. In: PONTES, Valdecy de Oliveira; COAN, Márluce; CAVALCANTE. Sávio André de Souza; CARVALHO, Hebe Macedo; ARAÚJO, Aluíza Alves. (Org.). Sociolinguística: interfaces e aplicações. São Paulo: Pimenta Cultural, 2024, p. 174-201.
BAGNO, Marcos. Dicionário crítico de sociolinguística. São Paulo: Parábola, 2017.
HAUGEN, Einar. Planning for a Standard Language in Modern Norway. Anthropological Linguistics. v. 1, n. 3. Indiana: Trustees of Indiana University, 1959.
LEITE, Marli Quadros. O nascimento da gramática: uso e norma. São Paulo: Paulistana; Humanitas, 2007.
MONTEAGUDO, Henrique. Aspectos da teoría da língua estándar do Círculo Lingüístico de Praga e os seus continuadores. Revista Grial 122. v. 22. Santiago de Compostela: Editorial Galaxia, 1994.
NEVES, Maria Helera de Moura. A vertente grega da gramática tradicional: uma visão do pensamento grego sobre a linguagem. 2 ed. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
SWIGGERS, Pierre. A historiografia da linguística: objeto, objetivos, organização. Confluência. n. 44 e 45. Rio de Janeiro: Instituto de Língua Portuguesa do Liceu Literário Português, 2013.